sábado, 13 de agosto de 2016

Momento da Poesia Gaúcha - Romance do Injustiçado



Hoje o blog traz a poesia de Aparício Silva Rillo, um dos mestres gaúchos da poesia.

Romance do Injustiçado 

Como talhado em pau-ferro, 
o carão de traços duros,
o bigodão mal cuidado
desabando sobre os lábios;
par de asas mui cansadas
de um avejão de cor negra.
Melena de muitos meses,
sobrando por sobre a gola
e o colorado de um lenço,
sangrando em riba do peito.

A bombacha de dois panos,
remangada sobre a bota. 
Os cravos da espora grande
mordendo a franja do pala,
bem atirado pra trás.
No fivelão da guaiaca,
luzindo em campo de prata,
o louro das iniciais.

Sobrando da faixa negra
que lhe abarcava a cintura,
o cabo entalhado em chifre 
da xerenga de dois palmos.
Um relho, trança de oito,
vinha arrastando a açoiteira
dependurado no pulso
pelo tento do fiel.

Pela rédea, o azulego, 
se via que flor de flete
malgrado a estampa judiada 
de pingo que muito andou.
Foi assim que há muitos anos 
bateu nas casas da estância
o celebrado bandido
chamado “Estácio Arijo”.

Bandido para a justiça,
por seu respeito se explique,
que as razões de um índio macho 
nem sempre são bem aceitas 
pelos códigos e leis.

Bandido por ter sangrado,
igual de raiva e de armas
a um cujo que desonrara 
a mais moça das irmãs.

Bandido, porque apertado 
entre as brigadas e a enchente, 
já não podendo escapar 
por debaixo da fumaça, 
matou um dos quatro praças 
que lo quiseram carnear.

Bandido, porque seguido 
por milicadas sequiosas 
de uma vingança total, 
fugiu da estrada real 
para o mais fundo dos matos,
carneando chibos alheios 
para o churrasco sem sal.

Bandido, porque enleado 
na rudez da ignorância, 
fez da fuga e da distância 
seu modo de mal viver; 
porque quis a sina ingrata, 
que nunca tivesse plata 
para pagar um bacharel.

Bandido, porque não teve, 
a exemplo de tanta gente, 
cancha livre, costas quentes, 
à sombra de um coronel.

E assim viveu como bicho, 
pelos fundões das fazendas, 
a carregar a legenda 
de perigoso e assassino, 
ximbo, bagual, teatino, 
com fama de touro alçado, 
tragando o duro guisado 
que lhe picava o destino.

N’algum bolicho de estrada 
boleava a perna cestroso,
pelos domingos de tarde.
Para um cantil de cachaça, 
meio quilo de bolacha 
mais um punhado de sal.

Olhava de olhos compridos 
para o mais das prateleiras, 
pra um bom fumo amarelinho, 
pros maços de palha buena, 
para a erva de palmeira, 
num saco sobre o balcão.
Mas vinha curto seu cobre, 
mal e mal traz precisão; 
o bolicheiro era pobre, 
e ele não era ladrão.

E a polícia no seu rastro, 
malgrado o tempo passado, 
perseguido e acuado 
por plainos e socavões, 
sempre mudando de pouso 
pra confundir os milicos, 
que em manhas sim, era rico, 
por evidentes razões.

Cansou-se um dia, afinal, 
daquela vida de bicho, 
daquele estranho cambicho 
com as más volteadas da sorte,
de não ter rumo nem norte, 
não ter descanso ou sossego. 

E assim bateu cá na estância, 
naquele entono de taita 
que manda parar a gaita 
por ter cansado do baile. 
E ao patrão, velho Boerana, 
pediu Estácio Arijo 
que mandasse algum chirú
levar ao povo um recado:
que viesse o delegado, 
que ele afinal resolvera: 
ele, o bandido; ele, o maula, 
trocar o largo dos campos
pelo encolhido das jaulas.

Nas suas noites de insônia, 
entre um pelego e as estrelas, 
conseguira convencer-se 
que, sendo justa, a justiça 
lhe entenderia as razões 
e lhe daria, a lo muito,
poucos anos de condena 
ou mesmo absolvição.

Foi então, que a meia tarde,
num fordecão atochado, 
deu na estância o delegado 
com quatro praças por quebra 
para formar o sarilho: 
quatro fuzis embalados, 
quatro dedos no gatilho.

Então ... Estácio Arijo
tomou seu último mate, 
no mesmo entono de guapo
que era seu jeito de sempre,
arrastou a espora grande 
na direção dos milicos.

- Nem mais um passo! 
gritou-lhe num gritinho de falsete, 
o delegado, um joguete 
nas mãos do chefe local.
- Levante as mãos! 
- Largue as armas! 
- Esteje preso, seu bandido, 
seu metedor de pendenga!

E o Arijo, decidido 
a entregar-se sem briga,
levou a mão à barriga 
para descartar a xerenga.

- Cuidado! Berrou um praça.
Tremeram cinco covardes; 
e na calma desta tarde 
berraram quatro fuzis, 
quatro sóis de fumo e sangue 
se lhe acenderam no peito.

Foi desabando aos pouquitos 
de frente para os milicos, 
no jeito de um velho angico 
caído junto às macegas 
que lhe envejavam o entono.

E já quase adormecendo 
para o derradeiro sono, 
quatro vezes mal ferido, 
teve ainda tino e ouvido 
para escutar um dos cinco 
que lhe gritava:
- Bandido!

Caiu ... 
olhando pro céu, 
tinto de sangue e de luz.
Dava-lhe o sol pela frente, 
como a incendiar-lhe a figura, 
a mais rica das molduras 
para enquadrar um valente !

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